O Sporting tem um belo complexo desportivo
Paulinho passou de besta a bestial. Gyokeres é mesmo uma besta.
Ainda não tinha andado numa montanha-russa este ano. Até que consegui um empréstimo de Gamebox para ir numa visita de estudo a Alvalade ver a estreia do Sporting no campeonato. Paulinho passou de besta a bestial. Gyokeres é mesmo uma besta.
O defeso sara todas as feridas e amuos. A cada nova temporada, o recomeço a partir do zero: vão-se os males coletivos e volta a esperança de que este ano é que é. E as primeiras jornadas dão até mesmo para algumas ilusões, algumas sem fundamento, como aquele ano em que parecia que o André Horta seria o herdeiro da camisola 10 benfiquista, ou, uns anos antes, quando o defesa-avançado Karadas se estreou na Liga com dois golos e uma assistência. A boa época de Catamo, estreado como titular, ainda é uma incógnita. Bem diferente é Gyokeres: mostrou em 15 minutos que é daqueles que não engana - potência, capacidade de segurar bola e boas decisões. Junta a isso muita gulodice (como quando não passou a bola ao Pedro Gonçalves no segundo golo), o que lhe vai trazer belos números. A versão 2023/24 do Sporting parecia revolucionada, mas na verdade era a mesma intensidade de anos anteriores mas com arrogância no ataque e concretização madrugadora.
Se os golos do Gyokeres nos mostraram quanto ele é bom, a entrada do Paulinho mostrou o quão necessário era o sueco no Sporting. Com o bem-mal-amado português em campo chegaram também os equívocos, os passes transviados, a atrapalhação na chegada à área e uma certa postura cabisbaixa contrastante com a confiança de Viktor. E Paulinho nem fez um mau jogo, mas a diferença é abismal. Bem, quanto ao resto da história… vocês já sabem.
No início da segunda parte, ainda os tempos eram de fartura e já o complexo desportivo de Alvalade se revelava. Perante uma série de hesitações e perdas de bola, que iam travando números mais expressivos (ainda estava 2-0), Trincão começou a ser assobiado. O lema do Barcelona é “Mais que um clube”; o do Sporting podia ser “Mas que clube…”. Casa cheia, ambiente de festa, vantagem confortável e… impaciência. Não sabemos como pode Trincão ultrapassar a sua depressão futebolística, mas este contexto não ajuda. Recebeu aplausos na substituição, mas até pareciam ser para elogiar a decisão do treinador em tirá-lo da partida.
A montanha-russa começou a descer vertiginosamente a partir daqui, não sabemos se pelas substituições, pela entrada mais agressiva do Vizela, pelo abalo de confiança depois do primeiro golo visitante ou se por todas as razões juntas. Coates e Ádan personificaram um poema de Cláudia Sampaio que O Poema Ensina a Cair recuperou na semana passada:
E que se quiseres podemos ser
como as pontes:
eu num lado, tu no outro
e no meio a distância que
quisermos dar.
Neste caso a distância foi um golo de Samuel Essende do Vizela, dor de cabeça a partir daí, e um descalabro geral que levou ao empate e enervou o estádio, que até então se divertia com os novos cânticos, um deles inspirado pela melodia religiosa de Guiado pela mão (com Jesus em vou). Poucos segundos separaram os dois golos do Vizela, mas pelo meio houve tempo para o início da passivo-agressividade. Foi a estreia na temporada do mítico “Joguem à bola / Que a camisola é para sujar”. Tenso.
A vantagem folgada até aos 75’ parecia ter dado espaço para se testar outro sistema (entrada de Paulinho para um ataque a dois) e condições favoráveis para uma estreia sossegada da nova coqueluche Afonso Moreira. Mas o novo miúdo da ala-esquerda foi apanhado pelo turbilhão coletivo e, quando recaíam sobre si as responsabilidades para devolver a vantagem aos leões, acusou a pressão e bloqueou - somou dribles atrapalhados, maus passes e cruzamentos inócuos. Parecia até teimoso, tais eram as fotocópias dos lances. Não foi poupado pelos sócios nem pelo treinador, que decidiu substituí-lo no último dos últimos minutos de jogo mesmo depois de o Sporting ter conseguido a reviravolta.
Dividiram-se as opiniões sobre se foi um puxão de orelhas humilhante para um jogador da formação ou se foi mera necessidade do jogo (entrada de Neto para trancar a defesa nos últimos 10 segundos). Também não sei. Só sei que quando vou a um restaurante e sou mal atendido evito voltar lá. Já o Sporting, mal servido por Afonso Moreira, continuava a insistir no restaurante da ala esquerda, com Edwards de portas abertas e sala às moscas do outro lado. Quanto a Rúben Amorim, parece também ter sido inspirado por Jorge Jesus na relação com a cantera. Veja-se a trajetória de Fatawu.
Neste surto de meia hora infernal, nem Pedro Gonçalves foi poupado. Se a professora olhar para a sala, é na cara dele que vai encontrar o culpado de todos os disparates. Mal ela sabe que ele é o único que faz sempre os trabalhos de casa, ajuda os alunos que não fizeram, partilha o lanche no recreio, tem o quarto limpo e arrumado, assume as despesas do meio-campo (e da chegada à área ) sempre que o mister pede e foi um dos mais discretos (desta vez) responsáveis pelas jogadas mortíferas do novo colega de carteira que veio da Suécia. Todos os clubes têm as suas embirrações. Mas os adeptos do Sporting já têm patinhos feios suficientes, não precisam de se virar para este craque.
Ano novo, velhas maneiras de estar. O ataque pode estar mais oleado, no meio campo ainda se espera por Hjulmand (porque 90 minutos ainda são pesados para Bragança, depois de tão longa paragem) e à defesa só falta um bom lateral e meses seguidos sem lesões. Mas as quebras emocionais parecem persistir - o chamado ADN de Leão -, mesmo que o Sporting tenha começado esta época melhor que a anterior (3-3 em Braga na 1.ª jornada). Só se lhe falta consistência: a mesma que têm os hambúrgueres dos bares do estádio, os melhores que alguma vez comi em bares de estádios.
A atitude implacável dos adeptos não é exclusiva das bancadas do Sporting. É mais um sinal dos tempos. Com bilhetes tão caros, os adeptos vêem-se mais como utilizadores-pagadores, consumidores que compraram um produto por um preço tão alto que tem de dar garantias de satisfação. Por outro lado, haver equipas campeãs sempre com mais de 85 pontos, durante épocas seguidas, não é um sinal de que há rolos compressores instalados nos três grandes: mostra que a Liga está lentamente a ficar mais coxa. E, por haver menos empates e derrotas dos candidatos ao título, também há menos margem de manobra e mais impaciência com os deslizes.